domingo, 11 de maio de 2025
Publicação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
Áreas da Ciência

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Problemas globais precisam das ciências sociais

“Sem reflexões humanas, dados e ciências duras não vencerão os desafios da próxima década”, diz Hetan Shah, diretor da Academia Britânica, em artigo para a Nature

No início do ano, Dominic Cummings, consultor sênior do governo do Reino Unido, publicou um anúncio incomum em seu blog, convidando cientistas de dados, matemáticos e físicos a se juntarem a ele no coração do governo. Como diretor da Royal Statistical Society, em Londres, e novo diretor da Academia Britânica, apoio o sentimento por trás da chamada: os dados têm um poder enorme para informar as políticas do governo.

Mas me preocupo com o fato de o convite ter priorizado a ciência e a tecnologia em detrimento das ciências humanas e sociais. Os governos devem garantir que eles também utilizem esse expertise ou não conseguirão enfrentar os desafios desta década.

Por exemplo, não podemos melhorar a saúde global se considerarmos apenas uma visão médica restrita. Epidemias são fenômenos sociais e biológicos. Antropólogos como Melissa Leach, da Universidade de Sussex, em Brighton, Reino Unido, tiveram um papel importante na contenção da epidemia de Ebola da África Ocidental com propostas para substituir rituais de enterro de risco por outros mais seguros, em vez de tentar eliminar completamente esses rituais.

Os tratamentos para a saúde mental fizeram progressos insuficientes. Os avanços dependerão, em parte, de uma melhor compreensão de como o contexto social influencia quando o tratamento é bem-sucedido. Argumentos semelhantes se aplicam ao problema de resistência antimicrobiana e uso excessivo de antibióticos.

As questões ambientais não são apenas desafios técnicos que podem ser resolvidos com uma nova invenção. Para enfrentar as mudanças climáticas, precisaremos de ideias da psicologia e da sociologia. Inovações científicas e tecnológicas são necessárias, mas para permitir que elas causem impacto é preciso uma compreensão de como as pessoas se adaptam e mudam seu comportamento. Isso provavelmente exigirá novas narrativas – o alcance da retórica, literatura, filosofia e até teologia.

Pobreza e desigualdade exigem ainda mais obviamente conhecimentos além da ciência e da matemática. O Conselho de Pesquisa Econômica e Social do Reino Unido reconheceu que a baixa produtividade no país é um grande problema e está investindo cerca de £ 32,4 milhões (US$ 42 milhões) em um novo Instituto de Produtividade, em um esforço para entender as causas e possíveis soluções.

As políticas que abordam a identidade nacional e geográfica também precisam de contribuições acadêmicas. O que é a ascensão do “nacionalismo inglês”? Como convivemos em uma comunidade de diversas raças e religiões? Como a migração é entendida e vivenciada? Esses intangíveis têm consequências no mundo real, como demonstrado pelo voto no Brexit e pelas discussões em andamento sobre se o Reino Unido tem um futuro como um reino unido. Será necessário o trabalho de historiadores, psicólogos sociais e cientistas políticos para ajudar a esclarecer essas questões. Eu poderia continuar: lutando contra a desinformação; desenvolvendo estruturas éticas para a inteligência artificial. São questões que não podem ser enfrentadas apenas com uma ciência melhor.

Considere como as tecnologias que melhoram a vida – e até mesmo as que salvam vidas – não foram adotadas. A “hesitação vacinal” é mais um fenômeno social do que técnico e a principal causa do ressurgimento do sarampo. As soluções dependem não de avanços médicos, mas de informações de antropólogos como Heidi Larson, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, que fez muito para entender as decisões das pessoas sobre se vacinarem e a seus filhos.

Em diversos casos, fatores sociais – normas culturais, entendimento educacional, parentes e redes sociais, dinâmica de poder ou simplesmente o layout de um edifício – devem ser considerados antes que a política pública possa ter sucesso. A fé cega na ciência de dados sem a compreensão de quais dados estão faltando ou de como os algoritmos podem exacerbar os vieses existentes pode levar a falhas nessas políticas.

Um bom exemplo da incorporação de conhecimento apropriado é a Equipe de Insights Comportamentais do governo do Reino Unido, que já administrou mais de 750 projetos em todo o mundo, em particular ensaios de controle randomizados de intervenções políticas. O trabalho sobre o tratamento da tuberculose na Moldávia elevou a taxa de adesão aos regimes médicos diários de 44% para 84%.

Downing Street está certa em procurar cientistas de dados, mas não deve ignorar os benefícios trazidos pelas ciências humanas e sociais. Essa experiência está inserida nas equipes e estruturas existentes e não deve ser negligenciada. Há muitos sucessos, desde a criação de equipes de ciência comportamental (“nudge units”) até o uso de painéis de especialistas em ciências sociais. Histórias detalhadas de políticas públicas – compiladas por agências como a Academia Britânica e o Instituto Britânico de Governo – podem fornecer reflexões surpreendentes e valiosas.

Poderia ser feito mais para conectar a comunidade de políticas com conhecimentos externos de ciências sociais e humanas. O Laboratório Governamental do Chile, focado na inovação, o programa Bridging the Gap, em Washington, e o Centro de Ciência e Políticas Públicas de Cambridge, no Reino Unido, usaram uma variedade de mecanismos – entre eles workshops, esquemas de financiamento e bolsas de estudos na área – para atrair especialistas ao processo de formulação de políticas públicas.

Em uma democracia, a consultoria especializada deve ser equilibrada com considerações como opinião pública, custos financeiros e demandas políticas. Mesmo assim, sem as ciências humanas e sociais, as ciências duras e a tecnologia podem fazer pouco para resolver desafios sociais complexos. Governos sábios encontrarão maneiras de incorporar essas reflexões.

Nature 577, 295 (2020)com tradução do Jornal da Ciência