sexta-feira, 9 de maio de 2025
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quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Políticas afirmativas trazem conscientização

Negros já são maioria nas universidades, mas os cortes orçamentários que atingem as universidades públicas afetam os programas de inclusão que os ajudaram a chegar lá, mostra reportagem da nova edição do Jornal da Ciência impresso, “Existe Futuro?!”

Família da beneficiada pelas cotas Andreia Nazareno. (Foto: Acervo pessoal)

Família da beneficiada pelas cotas Andreia Nazareno. (Foto: Acervo pessoal)

Pela primeira vez desde que o ensino superior foi implantado no Brasil há dois séculos, os negros ocupam mais da metade das vagas nas universidades públicas. De acordo com a pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e divulgada em meados de novembro, o País tinha, em 2018, mais de 1,14 milhão de estudantes autodeclarados pretos e pardos, enquanto os brancos ocupavam 1,05 milhão de vagas em instituições de ensino superior federais, estaduais e/ou municipais. Isso equivale, respectivamente, a 50,3% e 48,2% dos mais de 2,19 milhões de brasileiros matriculados na rede pública.

Na interpretação do próprio instituto, o avanço é resultado das políticas afirmativas, especialmente o sistema de cotas que desde 2012 reserva ao menos 50% das vagas disponíveis no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) para atender critérios de renda ou raça.

A boa notícia termina por aqui.

Atualmente, os cortes orçamentários que atingem as universidades públicas ameaçam matar as políticas afirmativas de inanição, alerta a educadora e pesquisadora Dyane Reis. “Algumas universidades já não têm mais recursos para os programas de assistência aos estudantes carentes”, diz Reis, lembrando que também os cortes de bolsas de estudo obrigam alunos pobres a abandonar suas pesquisas na universidade para trabalhar e ajudar a família.

A historiadora Luciana Brito concorda: “Os programas de cotas foram mantidos, mas com os cortes orçamentários, os auxílios, fundamentais aos estudantes, estão seriamente comprometidos”. O sistema de cotas está em vigor – até porque é Lei – e os programas de assistência e permanência estudantil (auxílios) não foram cortados, esclarece a professora Eblin Farage, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

No entanto, com o contingenciamento de verbas, as universidades estão sendo obrigadas a reduzir ou cancelar serviços sem os quais os mais prejudicados são exatamente os alunos de mais baixa renda, principalmente os que estão inseridos através de cotas. “O corte do transporte gratuito de ida e volta dos campi, reajustes nos valores da refeição em bandejões e a rescisão de contratos de manutenção de sistemas e computadores afetam a todos os alunos, mas podem inviabilizar os estudos para os de renda mais baixa”, afirma Farage, que também é secretária executiva do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes).

Dyane Reis é autora de uma das mais extensas pesquisas sobre as políticas afirmativas e seus efeitos para os estudantes negros. Professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), ela teve seu trabalho publicado juntamente com o de outros pesquisadores no livro “Reafirmando Direitos: Trajetórias de Estudantes Cotistas Negros (as) no Ensino Superior Brasileiro”. Publicado este ano pelo Programa Ações Afirmativas no Ensino Superior da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), “Reafirmando Direitos” traz as trajetórias de 33 estudantes negros e indígenas egressos das cotas, em todas as regiões do País.

As políticas afirmativas no ensino superior começaram a ser debatidas no fim do século passado já no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e posteriormente, com mais intensidade, nas gestões de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010). Até 2002, a presença de autodeclarantes pretos nas universidades não chegava a 2%. Em 2016, o Censo da Educação Superior registrou cerca de 138 mil estudantes ingressos por algum meio de reserva de vagas (cotas), dos quais 10,8% optaram por não fazer a declaração racial. Entre os que fizeram a autodeclaração, 49,6% correspondiam a pardos, 29,4% a brancos e 18,4% a pretos.

Naquele momento (2016), segundo o IBGE, a diferença de cor já havia se estreitado: 49,5% dos estudantes eram negros e 49%, brancos. Para a professora Dyane Reis, a reserva de vagas no ensino superior como uma política afirmativa permitiu uma mudança significativa no perfil dos ingressantes nas universidades públicas brasileiras. “E ainda que os pardos se apresentem em maior número e suscitem algumas questões em torno da identificação racial, não podemos desconsiderar que a presença de estudantes pretos nas universidades já alcança patamares diferenciados em relação a períodos anteriores”, analisou em um estudo apresentado em julho, durante o 19º Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado em Florianópolis (SC).

Para além de números e taxas percentuais e de quantos indivíduos tiveram acesso ao ensino superior, o grau de transformação causada pela oportunidade que estes alunos tiveram é muito mais profundo. “A própria existência do sistema de reserva de vagas encorajou jovens que antes nem sonhavam que podiam um dia fazer uma universidade. Muitos acabaram entrando mesmo fora das cotas”, destacou Reis em entrevista ao Jornal da Ciência. O livro “Reafirmando Direitos” conclui afirmando que, contraditoriamente, ao mesmo tempo em que o espaço universitário continua sendo “colonizador” e “discriminatório”, dominado pelos brancos de classe média, também se tornou um “espaço de ressignificação da identidade racial e engajamento político”, na medida em que abriu um campo de reconhecimento e reflexão sobre as desigualdades.

Uma vez dentro da universidade e conscientes de sua condição – até por se verem em um lugar que antes acreditavam não lhes pertencer – passaram a reivindicar mais espaços. “Houve uma mudança significativa na ‘cara’ da universidade que forçou mudanças, como a exigência de debates sobre a estrutura curricular em torno de políticas afirmativas, mais investimento em assistência estudantil, transportes e mais vagas nas residências estudantis”, afirma Reis. “As pessoas ficam mais conscientes de sua cidadania”, reitera a historiadora e professora da UFRB, Luciana Brito.

Família do beneficiado pelas cotas Alessandro Marques Gomes (Foto: Acervo pessoal)

Família do beneficiado pelas cotas Alessandro Marques Gomes (Foto: Acervo pessoal)

Para ilustrar sua afirmação, ela relatou ter participado em junho à formatura de uma estudante quilombola, cuja família, amigos e membros da comunidade lotaram o auditório onde se deu a cerimônia. Quando perguntada o que achou da experiência da graduação, Antônia Fernanda dos Anjos dos Santos, graduada em museologia, revelou que não tinha consciência do que significava ser quilombola até entrar na faculdade. Foi só então que ela descobriu a relação entre o passado de escravismo e a demarcação de terras de sua comunidade.

“Hoje ela, com outras pessoas da família e da comunidade, formaram um coletivo de estudos para pesquisarem a legislação que rege os quilombos”, conta Brito. E conclui: “Do ponto de vista da produção acadêmica, acho que com as cotas o Brasil ficou mais inteligente, dada essa diversidade de pessoas que hoje estão na universidade”.

Lamentando os cortes orçamentários que prejudicam e podem interromper esse processo, a historiadora acha que, longe de ser descontinuada, a política afirmativa deveria ser estendida. “São 400 anos de escravidão, uma década (de políticas afirmativas) é muito pouco”. Para ela, quando o Brasil fizer investimentos massivos em educação, ciência e tecnologia, qualificação de professores e conseguir prover condições dignas para os estudantes, as cotas não serão mais necessárias. “Mas estamos longe disso”, afirma.

Mesmo com todas as dificuldades, Dyane Reis acredita que o saldo das políticas afirmativas é positivo. Os jovens que entraram serviram de exemplo para irmãos, primos, amigos, vizinhos e até mesmo aos próprios pais, que se sentiram inspirados a retomar os estudos. “Já estamos indo para a terceira geração de negros que tiveram acesso à universidade”, diz.

Confira a nova edição impressa do Jornal da Ciência “Existe Futuro?!”

A versão em PDF é aberta a todos e pode ser acessada neste link

Janes Rocha – Jornal da Ciência