sexta-feira, 9 de maio de 2025
Publicação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Pandemias são interrompidas pela Ciência, e só: temores em um mundo politicamente negacionista e a negligência com as doenças

“O medo não é só do vírus, mas de que em regiões chave do mundo, com largas rotas migratórias e comerciais, a ciência seja ignorada em função de critérios político-financeiros”, escrevem Sérvio P. Ribeiro, professor titular da UFOP, e Geraldo Wilson Fernandes, professor titular da UFMG, em artigo subscrito pela Coalizão Ciência e Sociedade

Cientistas investigam a natureza. Desde a descrição de fenômenos, formas, quantidades e comportamentos, até a formulação de predições sobre acontecimentos futuros, baseados no entendimento presente e passado dos fenômenos naturais. Por exemplo, faz 20 anos que os cientistas alertam para as mudanças de regimes de chuvas, com cenários mais imprevisíveis e com eventos extremos mais frequentes, caso o aquecimento global criado pelo homem não fosse revertido. Não foi!!! E terça feira, 29 de janeiro, de forma imprevisível, as partes mais ricas da cidade de Belo Horizonte foram devastadas por uma chuva que superou os desastres das tempestades de 2017 (nessa parte do mundo, essas chuvas extremas deveriam se repetir naturalmente em intervalos de mais ou menos 20 anos, estando agora mais frequentes), ou das de sexta feira anterior, que ainda mais gravemente devastou regiões carentes da cidade. Previsão = acontecimento futuro. Dentre tantas coisas, para isso serve a ciência.

A questão é que quando cientistas fazem essas previsões, não querem que elas se concretizem. O que queremos é alertar as sociedades de perigos iminentes, e causar mudanças em políticas públicas, e comportamentos sociais, de forma a evitar danos às pessoas, ao meio ambiente, às economias. No caso do aquecimento global, sempre que fenômenos climáticos extremos e imprevisíveis atingem os ricos, os fazem perceber que não há onde esconder, e mudanças políticas contra o aquecimento global começam a ser mais evidentes.

Doenças também são assim: há reação quando a forma de transmissão impede que se possa escapar delas por ter algum dinheiro. Portanto, vírus que se espalham rapidamente com grande risco de contaminação e morte, ou que minimamente causarão rupturas no sistema econômico global, fazem o mundo se mobilizar por soluções rápidas. No entanto, enquanto a grande parte dos governos (ou seus Ministérios da Saúde) e Instituições internacionais fundamentam suas decisões no entendimento preditivo da ciência, sempre há governos e setores da sociedade que culpabilizam arbitrariamente fenômenos que não são a causa da pandemia, quando não, culpabilizam as vítimas, em especial aquelas em pobreza crônica. Essas são as pessoas expostas a condições precárias e as primeiras infectadas, como aquelas que comem sopa de morcego em mercados sem regulação sanitária adequada, potencial origem da atual pandemia de coronavírus que avança.

Desde o início anos 2000, o mundo enfrentou duas outras pandemias de coronavírus de forma bem-sucedida, mas só porque foram seguidos protocolos científicos aceitos globalmente para conter a expansão desses vírus. Resumidamente, cientistas epidemiologistas usam uma constante chamada H0, que é o número de pessoas que uma pessoa contaminada pode infectar. Esta é uma medida classicamente ecológica, que avalia a velocidade de multiplicação de indivíduos, no caso, de vírus. O assustador é que essa é uma medida exponencial, que quer dizer que após certo ponto, é impossível de ser freada.

O problema de certas viroses é que o H0 é muito alto, e as infecções ultrapassam tão rapidamente o número máximo de indivíduos que um ambiente pode sustentar (um vilarejo, por exemplo), que a relação entre o hospedeiro e a doença entra em colapso. Sendo nós o “recurso” para o vírus, estamos falando de índices aterrorizantes de mortalidade e ruptura social. Usando a ciência, é fácil entender que se as pessoas sadias (= recurso) estiverem fora do alcance do vírus antes dele se espalhar exponencial, e descontroladamente, interrompemos esse ciclo mortal. Ciência, predição e ação!

No entanto, em todos esses casos anteriores, as formas emergentes dos vírus não eram capazes de transmitir pelo ar e independente de partículas de saliva ou fluídos corporais. Agora, 2020, a nova pandemia de coronavírus avança, e os padrões sugerem a possibilidade de ser capaz de infectar pessoa a pessoa, e pelo ar! Outro detalhe preocupa em 2020: a maior parte da população humana está nas mãos de governantes autoritários ou, quando democráticos, negacionistas da ciência.

A tradição de escutar os cientistas tem variado de tempos em tempos, com consequências quase sempre devastadoras. Nos casos cotidianos de endemias, as consequências de não escutar a ciência (e de não agir coordenadamente via órgãos internacionais regulatórios – duas tendências irmãs: negar a ciência e negar a internacionalização do mundo) são na verdade um enorme crime social, pois quem paga os remédios e contas e enterram seus entes queridos são os que não têm como escapar, seja saindo das áreas de risco ou mesmo tendo condições econômicas de minimizar a exposição de seus familiares e de si próprio.

Talvez por isso estejamos alarmados com uma doença que temos quatro vezes menos chance de contrair que o sarampo, ou que mata muito menos do que a febre amarela ou o tipo mais agudo de dengue hoje presente no Brasil. Talvez, também pelo mesmo motivo, não tenha havido alarde sobre a entrada da perigosíssima febre do Nilo no Brasil. Seria por que as quatro vítimas de febre do Nilo que a Secretaria Estadual de Saúde do Piauí tenha acometidos indevidos com elevada vulnerabilidade social, que não estejamos alarmados com o fato de um caso ser potencialmente autóctone (transmitido localmente, e não fruto de viagem)? Ou por que esquecemos da zika? Os vírus da família Flavivirus transmitidos por mosquitos são um grave problema de saúde, com raízes profundas em problemas ecológicos e sociais. Há predições científicas sérias sobre sua expansão territorial, persistência e letalidade. Haverá reação governamental à altura?

Voltando ao coronavírus e sua prevenção, qualquer governo no mundo que atuar desamparado de critérios científicos no seu combate, reeditará um termo moderno: o “racismo ambiental”, que define situações nas quais os custos de um impacto ambiental atingem mais os pobres que os ricos. Em outras palavras, um cenário epidemiológico desamparado de suporte científico e sem estar pautado em condutas internacionais validadas cientificamente, poderia vir a ser definido como “racismo sanitário”, no fundo, algo tão óbvio e antigo em países em desenvolvimento que não precisa nem explicar, nem tipificar.

O medo, portanto, não é só do vírus, mas de que em regiões chave do mundo, com largas rotas migratórias e comerciais, a ciência seja ignorada em função de critérios político-financeiros. Um governo responsável trata seu Ministério de Saúde como um segundo Ministério de Ciência e Tecnologia, capaz de dialogar e criar força de trabalho com as universidades e centros de pesquisa. Essa base institucional de diálogo e colaboração no controle epidemiológico é presente no Brasil há várias décadas. Olhando de maneira mais ampla, não valorizar as universidades e o ensino equivale a não planejar com base no investimento na ciência e monitoramento de ameaças potenciais ao cidadão.

Dados divulgados diariamente

Alguns dos dados mais recentes estão sendo divulgados pela Nature diariamente e pelo site : “https://gisanddata.maps.arcgis.com/apps/opsdashboard/index.html#/bda7594740fd40299423467b48e9ecf6”:

1 – A despeito de menor letalidade, a expansão é a mais exponencial que do último coronavírus. Segundo modelos preditivos construídos em janeiro atrás na University of London, as taxas de infecção seguem o esperado, entorno de 2-3 pessoas infectadas por paciente previamente infectado. Portanto, não está havendo uma desaceleração ou real controle da expansão da doença na China ou no mundo.

2 – No dia 05 de fevereiro havia 24.604 casos confirmados no mundo (dia 26 eram 2.744, dia 28 4.690, dia 30 9.976, e dia 03 17.485), uma taxa já ultrapassando 60% de incremento, desde dia 26 de janeiro, em 27 países. Dia 17 de fevereiro o primeiro caso em África é detectado, levantando dúvidas sobre a eficácia do controle e informação de alguns países pelo WHO. Em 26 de fevereiro, após um mês, são 81.191 casos com 2.768 mortes no mundo. Em 30 de janeiro a Alemanha registrou um caso de contágio assintomático. Vinte dias depois, a Itália entra em alerta máximo com 322 casos e 10 mortes (26 de fevereiro), de onde veio o primeiro caso confirmado no Brasil. No dia 26 o governo dos EUA alerta a população para a eminência da expansão da doença no território americano, dita por eles como inevitável, um dia após alguns cientistas apontarem para esse novo, e perigoso estágio de expansão da doença.

3 – China já disponibilizou a sequência genética do vírus, mas não amostras cultivadas em laboratório. Austrália já está, mesmo assim, crescendo o vírus em cultura de células para pesquisar vacinas.  Detalhe, vacinas geram patentes para os países que as desenvolvem. Outros, em princípio, pagam para toma-las.

4 – Outro risco é que aparentemente pessoas sem sintomas podem estar transmitindo.

5 – Como sempre, esses vírus se tornam agressivos porque acabaram de invadir a espécie humana, potencialmente vindos da horrorosa sopa de morcego, e quando invadem um hospedeiro novo, são agressivos, e não darão muita chance para resposta imune rápida.

6 – No entanto, se o isolamento do vírus for eficiente, sua própria agressiva taxa de crescimento o levará ao colapso (ele segue as chamadas dinâmicas de crescimento caótico). Tirando as pessoas de perto, ele é facilmente extinguível. Algo mais difícil de fazer se transmitir pelo ar.

Os cuidados são os mesmos das outras pandemias: 1 – mãos sempre lavadas, 2 – distância de gente tossindo (e gente tossindo – não os outros – usando máscaras, senão vai faltar máscara para quem precisa de fato), 3 – sem dedo na boca, nariz, olhos, 4 – sem compartilhar comidas e talheres, 5 –  governo forte e transparente, agindo alinhado com a ciência, os cientistas e médicos…. sem demagogia ou politicagem numa hora dessas.

Sobre os autores:

Sérvio P. Ribeiro é professor titular e chefe do Laboratório de Ecohealth da Universidade Federal de Ouro Preto NUPEB-UFOP e professor visitante no Departamento de Parasitologia, ICB-UFMG.

Geraldo Wilson Fernandes é professor titular de Ecologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

O artigo é subscrito pela Coalizão Ciência e Sociedade que reúne 72 cientistas de instituições de pesquisa de todas as regiões brasileiras.