quarta-feira, 2 de outubro de 2019
Para além do déficit orçamentário para bolsas de estudos, o CNPq perde capacidade de enfrentar desafios importantes, diz o sociólogo Sérgio França Adorno de Abreu, que encerra seu quarto ano como membro do Conselho Deliberativo (CD) da agência
O risco de o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) não ter dinheiro para pagar as bolsas de estudos dos pesquisadores mobilizou a comunidade acadêmica e científica e comoveu a sociedade. Mas a crise orçamentária que atinge a principal agência de fomento à ciência, tecnologia e inovação no Brasil vai além do problema do déficit orçamentário para cumprir compromissos com o pagamento de bolsas, afirma o sociólogo Sérgio França Adorno de Abreu.
Graduado em Ciências Sociais pela USP, doutor em Sociologia pela mesma universidade (1984), com pós-doutorado pelo Centre de Recherches Sociologiques sur le Droit et les Institutions Pénales (Cesdip) da França, Adorno é professor titular na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Ele também coordena o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da universidade, sua área de pesquisa é a Sociologia Política, atuando principalmente nos temas da violência, direitos humanos, criminalidade urbana, controle social, conflitos sociais, justiça e democracia.
No dia 18 de setembro, Adorno encerrou seu quarto ano como membro do Conselho Deliberativo (CD) do CNPq, um dos seis conselheiros representantes da comunidade científica no quadro de 17 membros. Ele define esse período como gratificante, ao mesmo tempo frustrante.
Com a visão de dentro da agência, Adorno alerta para uma contínua “espiral de rarefação orçamentária”, que diminui a cada dia a capacidade do Brasil de enfrentar desafios, ampliando o atraso frente a outros países. O sociólogo alerta para um aspecto pouco discutido da crise, que é a perda de recursos humanos do CNPq, profissionais especializados, conhecedores de aspectos burocráticos e sistemáticos do dia a dia de se fazer ciência. É o que ele chama de “desconstrução institucional”.
Por telefone, Adorno fez ao Jornal da Ciência o seguinte balanço de sua participação no conselho do CNPq:
Jornal da Ciência – De seu ponto de vista, o das ciências sociais, como vê essa crise do financiamento da ciência no Brasil? Enxerga alguma saída?
Sérgio França Adorno de Abreu – Por enquanto não vejo nenhuma saída. Acho que eu, assim como vários dos meus colegas da comunidade científica brasileira, estou convencido de que essa política vai na contramão de uma possível saída a médio e longo prazo.
JC – Por quê?
Adorno - Todos os países em períodos de crise reforçaram seus investimentos em ciência e tecnologia. É um investimento para criar uma base de conhecimento que possa, de alguma maneira, enfrentar problemas básicos e reduzir déficits sociais, melhorar as condições de vida da população e criar condições mais favoráveis ao salto do desenvolvimento. Todos nós sabemos disso, e falo não apenas do ponto de vista de um sociólogo, acredito que as ciências humanas têm um papel nesse processo. No mundo inteiro, as diferentes ciências têm conversado cada vez mais, há vários tipos de empreendimentos que envolvem meio ambiente, por exemplo, que não envolvem somente as áreas de biodiversidade, no sentido mais restrito do termo, mas também sociólogos, antropólogos. Tem a questão das populações que precisam ser preservadas, tem a questão do impacto social de certos projetos. Então levo em consideração a ideia de que temos que pensar na ciência, não só na sua diversidade, mas também no seu conjunto.
JC – Quais as consequências de ir nessa contramão?
Adorno - Estou muito preocupado porque a gente está entrando em uma espiral de rarefação orçamentária, ou seja, menos desafios vão sendo enfrentados e isso vai ampliar o atraso do país frente a outros países, outras sociedades, vai retardando a formação de recursos humanos, o que pode gerar problemas graves porque é muito difícil em dez ou quinze anos, recuperar essas perdas. Fora que você pode interromper projetos que, no limite, significa perder todo o investimento feito anteriormente. Então eu confesso que estou muito preocupado, acho que isso pode provocar uma desconstrução institucional.
JC – Como essa situação afeta as agências de financiamento à ciência?
Adorno - Agencias como CNPq e Capes são resultado de um longo processo que acompanhou a maior maturidade da comunidade acadêmica nacional, não só na formação de recursos humanos, mas nos intercâmbios internacionais, na correlação dos pesquisadores brasileiros com os estrangeiros nos principais centros de investigação. O que nós queremos como pesquisadores? Não só contribuir com o avanço da ciência em geral, mas poder também, com a nossa reputação, com a qualidade da ciência que é feita no Brasil, poder influenciar as agências internacionais de pesquisa, poder dizer que há problemas prementes que nós podemos contribuir e chamar a atenção global para a resolução de problemas extremamente importantes ligados à saúde, redução das desigualdades de modo geral, a proteção da vida dos povos mais vulneráveis.
JC – Esse governo costuma colocar tudo isso em oposição ao desenvolvimento econômico, aos investimentos, ao crescimento do agronegócio. Como você vê essa posição?
Adorno - Vamos ver assim: se eu estivesse no governo teria que resolver o problema do orçamento. Então eu teria que tomar uma atitude política para determinar as prioridades que não podem deixar de ser atendidas. Os governos, independente do seu colorido partidário, tem que convencer os seus eleitores e a nação de um modo geral de que, em um período de crise e recessão, há certas prioridades que não podem ser postergadas. Então há um problema de crise orçamentária, mas que com esforço nacional, com o fato de que podemos discutir ajustes nesse orçamento, e a comunidade científica pode ajudar, há saídas. A sensação que eu tenho é que esse governo não tem interesse ou não indica se está caminhando em uma direção satisfatória. Uma coisa é dizer que vai reduzir investimentos em certas áreas por causa das restrições orçamentárias. A comunidade cientifica pode discutir, sugerir em que momento e em quais despesas é possível efetuar cortes, se absolutamente necessário. O que não dá é para você destruir a base que está constituída por anos e anos de investimentos. Instituições como o CNPq, a Capes, não podem ser simplesmente desabilitadas, desconstruídas. A comunidade tem que estar aberta a discutir ajustes, mas não dá para atuar simplesmente como se estivesse em uma terra arrasada.
JC – Foi essa a sensação que você ficou depois da reunião (do CD CNPq em 18/9)?
Adorno – A sensação que fiquei é que não consigo ver luz no fim do túnel. Sinto que o CNPq vem fazendo esforços para cobrir o seu déficit orçamentário. Não só os presidentes anteriores, também o atual, estão encontrando muitas dificuldades. Mas esses esforços não tem logrado êxito.
JC – Além de bolsas, como esse déficit orçamentário se reflete no CNPq?
Adorno - O CNPq foi perdendo funcionários ao longo do tempo, o que significa perder profissionais altamente qualificados, treinados, pessoas que sabem lidar com toda a complexidade da ciência. As áreas de humanas não precisam de importação de laboratórios, insumos e equipamentos, a não ser áreas como arqueologia, etc., que tem essa interface com as ciências da natureza ou as chamadas ciências duras. Mas é necessário ter pessoas altamente qualificadas para entender, não só as singularidades da ciência, mas também as questões administrativas, da importação e fiscais envolvidas. O corpo funcional vai minguando, vai chegar uma hora que não tem como sustentar a instituição, porque você não pode colocar um mesmo funcionário para fazer muito mais do que ele pode fazer. As autoridades encarregadas de tomar decisão parecem não estar conscientes da responsabilidade e do perigo que é comprometer a existência dessas instituições.
JC – Você acha que as pessoas que estão lá não têm consciência ou não têm vontade ou têm outro plano?
Adorno – É muito cedo para dizer. Como sociólogo eu costumo analisar os fatos decorrentes de um ciclo ou de um processo, porque durante um acontecimento você muitas vezes não consegue ver todas as direções que o fato está tomando. Pode ser inexperiência, pode ser um projeto que não está explícito, pode ser que está se identificando problemas onde eles não existem. Por exemplo, achar que as universidades são todas focos de uma revolução à esquerda. Não é isso, claro que as universidades têm todos os espectros políticos, partidários e ideológicos. A palavra universidade contém universo, e elas têm que congregar o universo de todas as perspectivas culturais, científicas, políticas. É claro que tem pessoas mais identificadas com ideias da esquerda socialista, mas longe de dizer que são dominantes. Em todas as áreas há liberais, pessoas mais afinadas com o mercado, que acham que primeiro é preciso crescer para depois dividir o bolo, tem de tudo. E você tem que reconhecer que a universidade caminha justamente porque é esse ‘locus’ dessa diversidade, que permite discutir e avançar. Eu fico muito preocupado com essa ideia de uma universidade única, homogênea porque isso não é universidade, isso é quando muito um colégio. Mesmo nos nossos colégios essa homogeneidade é muito mais fictícia que real.
JC – Além do orçamento, quais as principais adversidades?
Adorno - Outra grande questão é que está havendo uma grande redução do fomento que é todo o investimento em pesquisa básica principalmente. É uma preocupação, porque as bolsas são muito importantes, devem ser priorizadas. Foi discutido muito que essa divisão entre bolsa e fomento não é necessariamente precisa porque, afinal de contas, com as bolsas você permite que os pesquisadores estejam no laboratório e as pesquisas estejam em andamento. Mas o fomento são os editais de pesquisa, são os incentivos para realizar pesquisas induzidas em áreas estratégicas de saúde, do meio ambiente, da qualidade de vida nas cidades na economia, etc.
JC – E não adianta ter bolsa e não ter fomento, sem laboratório, onde pesquisar?
Adorno - Em boa parte das áreas, se você tiver o laboratório e não tiver os insumos necessários, não consegue fazer. Então temos que lutar para garantir as bolsas, mas também para que os recursos de fomento sejam restituídos para que possamos elevar a pesquisa no mínimo no mesmo patamar que estava sendo anteriormente.
JC – Quanto tempo você ficou no conselho?
Adorno – Fiquei quatro anos. Normalmente a gente fica dois anos com possibilidade de recondução por mais dois anos. E esses quatro anos foram difíceis. Muita coisa foi feita, muitos programas, eu mesmo fui parecerista este ano do relatório de atividades do CNPq realizadas em 2018. E claro, é uma agencia muito complexa, com inúmeras atividades, programas, presta conta de seus resultados anualmente. É impressionante quando a gente começa a ver de perto os documentos e viver a instituição por dentro, não temos a ideia de que é uma instituição tão vigorosa e competente. Agora, esses quatro anos eu passei a maior parte do tempo discutindo orçamento.
JC – O que deveria estar discutindo, ao invés do orçamento?
Adorno – Acho que deveria discutir os desafios e os avanços, porque a ciência não para. Quando surgiu a epidemia da Zika, imediatamente a comunidade se organizou para investir nos estudos, que pudessem de alguma maneira oferecer, no menor espaço de tempo possível, diretrizes governamentais para lidar com essa questão grave. Esse é um programa que não pode ser suspenso, entre outros.
JC – Você citou um programa, o de pesquisa para o combate à Zika, que foi um dos mais bem sucedidos, mesmo com todas as dificuldades…
Adorno - Eu citei esse, mas tem programas de energia, uma questão fundamental para o país. Todos os países do mundo estão tentando lidar com a energia, sobretudo em uma economia verde. Então não podemos interromper esses programas. Nós sabemos que, no caso da energia, você pode até encontrar soluções gerais, que atendam a várias sociedades, mas muitas vezes elas têm a ver com características de cada nação, de cada sociedade, seus recursos naturais, sua riqueza. É preciso mobilizar esses recursos para poder atender às exigências do desenvolvimento e ter uma energia que sustente esse desenvolvimento a curto, médio e logo prazos.
JC – Fazendo ainda um balanço da sua participação nestas reuniões nos últimos quatro anos, você sentiu algo distinto dessa vez em comparação às anteriores, em relação à dinâmica da reunião?
Adorno - Não, eu sinto que a situação foi se agravando…
JC – Só a situação orçamentária?
Adorno - Da situação orçamentária vem tudo atrás. Não é só sobrevivência das bolsas, dos programas de investigação, de fomento, mas também o quadro dos funcionários. A queda do número de funcionários e a expectativa de aposentadoria vão tornando a instituição inviável. O que senti nestes anos todos foi um agravamento. Eu esperava contribuir mais para que pudéssemos discutir linhas de pesquisa, editais, investimentos. Mas para isso você tem que ter um orçamento minimamente sólido.
JC – Você diria que sai frustrado?
Adorno - Frustrado não, porque participar de um conselho desses é de alguma forma ampliar a consciência do que é fazer ciência em uma sociedade como a brasileira. Se você comparar o Brasil com outras sociedades, nós fazemos muito com muito pouco dinheiro. Se tivéssemos o dinheiro que nações como Estados Unidos, Canadá, Alemanha e outros dedicam à ciência, nós estaríamos fazendo uma ciência em grau equivalente ao que se faz em outros países. Em termos de qualidade, o Brasil faz ciência de ponta. Eu digo em termos de uma maior cobertura, de poder acelerar a tradução dos resultados de pesquisa em políticas públicas. Eu diria que conheci pessoas surpreendentes do ponto de vista intelectual, acadêmico, muito comprometidas com a ciência e com o interesse público, então foi um privilégio, aprendi muito e posso dizer que desse ponto de vista saí enriquecido.
JC – E os aspectos negativos?
Adorno – Estamos atravessando um período de crise e tudo o que você poderia contribuir do ponto de vista da experiência como pesquisador é muito limitado. Então eu saio pessoalmente muito agradecido de ter tido essa experiência, de poder participar, mas não pude fazer muita coisa a além de contribuir para que a gente, de alguma maneira, pudesse pensar juntos, em várias oportunidades o conselho manifestou suas preocupações, se associou com as principais organizações da sociedade civil no campo da ciência e da tecnologia, mas tivemos pouca força para convencer os tomadores de decisão de que as nossas demandas não são pessoais, mas são da nação, que envolvem o interesse público, que se procura não só fazer frente aos desafios do desenvolvimento, mas também pensar que temos que ter uma sociedade internamente mais justa, integrada, cooperativa para que no médio prazo possamos dizer que avançamos em vários aspectos da sociedade brasileira. Hoje, com essa crise toda, não sei se a gente vai poder dizer isso.
Janes Rocha – Jornal da Ciência