sábado, 3 de maio de 2025
Publicação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
Artigos

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Ciência e direitos humanos

“Todos sabemos que a ciência tem uma dívida com a história dos esforços humanos para oferecer melhores condições de vida para todos – uma vez que, desde a revolução francesa, somos todos iguais”, escreve Ennio Candotti, diretor do Museu da Amazônia e presidente de honra da SBPC, em artigo para o Jornal da Ciência

Entre o pensar com espírito científico e a felicidade humana em um mundo de bem-estar social os direitos humanos são um elo fundamental.

Os direitos de propriedade, individuais ou industriais, em tempos de desenfreado neoliberalismo ameaçam o caráter público das descobertas cientificas na natureza. Esta ameaça, ao meu ver, é o maior desfio aos princípios éticos que orientam hoje o fazer científico.

Trágicas ameaças que estão sendo reveladas pela batalha travada pelo sistema científico e de saúde contra o covid-19.

No ano passado Donald Trump, então presidente dos EUA tentou negociar a exclusividade dos direitos de propriedade de uma vacina alemã. Por sorte o laboratório alemão não aceitou a ignominiosa negociação de exclusividade.

Todos sabemos que a ciência tem uma dívida com a história dos esforços humanos para oferecer melhores condições de vida para todos – uma vez que, desde a revolução francesa, somos todos iguais.

Durante os últimos quatrocentos anos o domínio público das descobertas fertilizou progressivamente o projeto científico e seu espirito inovador.

O domínio público, sabemos, é também fundamental para que possamos validar as descobertas no fazer ciência. Se os dados e informações recolhidas não são públicas como podemos verificar se a descoberta é consistente?

A ciência é uma alavanca no esforço humano para elevar os padrões de civilidade e os direitos humanos são um guia para conviver com a diversidade cultural e humana, e particularmente para defender os direitos da mulher e os esforços comuns pela paz.

Apesar disso a covid-19 demonstrou que os direitos de propriedade são dominantes em nosso trágico mundo. Percebemos com horror que construímos um sistema de ciência sem protege-lo do ‘vírus’ dos direitos de propriedade. (direitos de propriedade industrial ou mesmo patentes abusivas como no caso das vacinas ou de manipulações do código genético).

Ao que parece as teorias econômicas dominantes contaminaram e bestializaram não apenas os mercados do mundo, mas também o nosso sistema cientifico.

“Todos contra todos” é o novo mote?

São os direitos de propriedade mais importantes que os direitos humanos?

Onde estão os princípios de solidariedade e cooperação?

Princípios que cimentaram durante séculos a comunidade cientifica mundial.

Onde está o famoso “colégio invisível” que promove e defende os princípios de “ciência para o povo e para a paz”.

É nossa a responsabilidade que 30% da população mundial está vacinada mas apenas 3% na África?

Ao preço de US$ 10 a dose (no Brasil) não é surpresa se apenas 3% dos africanos foram vacinados duas vezes. A tragédia não pode nos surpreender.

Sabemos também que poucos laboratórios farmacêuticos privados participam do banquete.

Pergunto: ao construir o sistema científico, não fomos capazes de protegê-lo, contra as ameaças dos predadores?

Todos os esforços que dedicamos para promover o espírito cientifico não foram suficientes para proteger o sistema contra o “vírus do lucro das farmacêuticas”, do mercado e dos interesses político econômicos.

Eu acredito firmemente que precisamos de um “Habeas data Naturae” um instrumento jurídico, constitucional para defender o domínio público dos dados da natureza e das informações científicas fundamentais, um instrumento que deve ser também um princípio fundamental, algo semelhante ao “Habeas corpus” nos direitos humanos e sociais.

Um instrumento que proteja o domínio público da informação científica, e o caráter público das descobertas e dados, extraídos da natureza e da história da ciência.

Um instrumento legal que proteja a cooperação cientifica e promova a educação para a paz e a defesa dos direitos humanos.

Nós celebramos os resultados de quatrocentos anos de cooperação científica. Herdamos de Galileu, Newton e Kepler a universalidade dos princípios básicos das ciências físicas. A gravidade na Terra obedece às mesmas leis que em uma galáxia distante.

“ Se eu perscrutei horizontes mais amplos é porque subi em ombros de gigantes” disse Newton certa vez.

Em 1999 ocorreu em Budapeste um Congresso sobre o estado da ciência no mundo, organizado pela Unesco e ICSU. Lemos na Carta que foi então redigida e divulgada: “A circulação das ideias e resultados das pesquisas científicas é fundamental para o progresso da ciência e suas implicações éticas e para o enriquecimento da educação...”

“O conhecimento permitiu aplicações que trouxeram grandes benéficos para a humanidade: A vida média aumentou, a cura de doenças se tornou possível a produção agraria cresceu. As novas técnicas de comunicação abriram oportunidades sem precedentes para a interação de povos e indivíduos.”

No entanto a Carta de Budapeste reconhece também que “ todos esses benefícios estão distribuídos de modo desigual e amplificam a distância entre países desenvolvidos e em desenvolvimento”. A aplicação de inovações tecnológicas na indústria “tem sido a fonte de desigualdade e exclusão social”.

As preocupações da Unesco ICSU revelam também um compromisso: “Será necessário para promover a confiança na ciência estabelecer um novo contrato social….o conhecimento científico deve respeitar a biodiversidade e os ecossistemas em nosso planeta”.

Preocupa-me a ausência neste parágrafo, ao lado do “respeito à biodiversidade e aos ecossistemas”, a ideia que o conhecimento científico deve também respeitar a diversidade cultural e social – ao menos para entende-la – que encontramos em nosso planeta.

Cinquenta anos de batalhas para a institucionalização da ciência e de seus usos práticos deveriam ter nos ensinado que não podemos oferecer uma única solução para os complexos problemas do desenvolvimento e justiça social.

Sabemos que as soluções dos problemas dependem “do ponto de vista” a partir do qual são observados e acima de tudo como as soluções são implementadas.

As dimensões culturais e da história de cada sociedade deveriam ser consideradas “cum grano salis” (com um pouco de bom senso) “quando procuramos soluções cientificas para alcançar o desenvolvimento e o progresso local” ( e não apenas o crescimento econômico).

Também sobre a propriedade intelectual a Carta de Budapeste expressa suas preocupações.

Os direitos de propriedade intelectual devem ser protegidos, mas o acesso à informação e dados é fundamental para o trabalho científico.”

“ Deveria ser elaborado um marco legal, universalmente aceito, que considere a necessidade de garantir o acesso aos dados e informações nos países em desenvolvimento”.

E eu acrescentaria: para defender a livre circulação do conhecimento, o pacto acima mencionado deveria observar também os valores da ciência e da sua história, olhar para a solidariedade entre os povos e os princípios dos direitos humanos, que devem ser contrapostos aos estreitos horizontes dos interesses econômicos predominantes hoje.

Se as recomendações da Carta de Budapeste tivessem sido ouvidas, e os povos excluídos tivessem sido efetivamente incluídos no marco legal da “ciência para todos” e tivesse sido garantido a todos os países o livre acesso à cooperação e ao conhecimento científico, possivelmente a batalha contra a covid em nosso dias, 20 anos depois de Budapest, poderia estar sendo combatida com menos sofrimento e vítimas fatais.

Na Índia, o estado de Kerala é um exemplo que é possível enfrentar com sucesso a pandemia quando a ciência e a educação popular têm raízes profundas na sociedade.

Muitos anos atrás, em 2003, visitei o Kerala e conheci os dirigentes do movimento KSSP Kerala Shastra Sahitya Parishard. Um movimento comprometido em levar a ciência ao povo (que iniciou em 1962). Milhares de educadores, cientistas, ativistas ensinaram -e ainda ensinam- a milhões de jovens e adultos em campanhas de “ciência com os pés descalços para todos”.  (em junho de 2003 publiquei um artigo na edição impressa do Jornal da Ciência sobre esta viagem)

Hoje verificamos que as campanhas para controlar os danos da covid dependem da educação, da ciência e do domínio público dos conhecimentos científicos. Verificamos também que os direitos de propriedade inibem uma produção de vacinas mais ampla e barata.

Ciência e educação são fundamentais para incluir o povo nos benéficos das campanhas de vacinação.

É preciso lembrar que o número de vítimas da covid no Kerala foi sensivelmente menor do que em países ricos e desenvolvidos. Kerala não é um estado rico.

Para concluir podemos dizer que devemos observar seis princípios e preocupações para alcançar os objetivos de uma maior igualdade social, bem estar e cuidados com a saúde:

1.Os direitos humanos são mais importantes do que os direitos de propriedade

  1. As descobertas científicas na natureza e os desenvolvimentos em ciência fundamental (como vacinas e medicamentos para os cuidados com a saúde) devem ser de domínio público.
  2. Um instrumento legal como um “Habeas Data Naturae” deve proteger o domínio público das descobertas científicas contra as pressões proprietárias hoje dominantes nos mercados da economia.
  3. Deve ser garantida aos países em desenvolvimento a livre cooperação internacional e o acesso aos dados e informações científicas.
  4. Os movimentos de educação científica devem respeitar a história e as diferenças culturais entre os povos.
  5. Deve ser garantida uma ampla e inclusiva participação do povo em nossos movimentos pro “ciência para o desenvolvimento social e cultural”

Assim, se a ciência e o espírito científico são uma alavanca , os direitos humanos são uma bússola no nosso campo de batalha.

*O artigo expressa exclusivamente a opinião de seu autor